“A elegância das viúvas” de Alice Ferney (tradução de trecho e apresentação)

Samara Geske
6 min readNov 3, 2020

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Alice Ferney

Alice Ferney, pseudônimo de Cécile Brossollet, é uma romancista contemporânea francesa. Alice é doutora em Economia, área na qual também leciona. Católica praticante sem, no entanto, considerar-se uma “escritora católica” — na mesma linha de Bernanos — a autora explora com beleza e honestidade, sobretudo no livro que ora apresentamos, temas que são desconsiderados pela imensa maioria dos autores franceses. Retifiquemos: não se trata apenas de temas, mas de uma maneira de abordá-los, de vê-los sob um diferente ponto de vista do restante dos seus pares.

Os temas que perpassam todos os seus romances são, de um lado, a intimidade, tendo a maternidade e as relações amorosas como foco e, de outro, a grande História, sobretudo os eventos que marcaram a nação francesa.

Seu primeiro romance, Le ventre de la fée [O ventre da fada] aparece em 1993 pela Editora Actes Sud. Desde então tem se mostrado uma escritora prolífica, tendo publicado pela mesma casa editora 11 romances. O seu último livro, L’intimité [A intimidade], foi lançado nesta abertura da temporada literária na França (2020).

“A elegância das viúvas” é como uma pequena jóia: breve e belo. Em pouco mais de 100 páginas acompanhamos a história de uma família, católica e burguesa, vivendo no início do século XX, ritmada pelos casamentos, nascimentos e mortes dos seus membros.

Um livro, como o título aponta, no qual as mulheres ocupam um lugar preponderante: mulheres que dão à luz e, por vezes, a própria vida a seus filhos. Mulheres que enterram os seus maridos e progenitura sem jamais perder a força e a dignidade, de onde a “elegância” dessas viúvas.

O livro foi adaptado para o cinema Tran Anh Hung sob o título de “Éternité” (Eternidade), em 2016. No filme, o diretor seguiu precisamente a estrutura narrativa do romance: a presença da voz de uma narradora que conta a história e pouquíssimos diálogos entre os personagens. A escolha de Hung se deve precisamente a sua apreciação pela escrita de Ferney.

Escolhi traduzir a abertura do livro, que além de ser uma amostra desta escrita concisa e, ao mesmo tempo, riquíssima, concentra todos os temas que perpassarão a narrativa: o tempo, a morte, a família e, planando sobre tudo e todos, Deus.

Gostaria de fazer alguns breves comentários acerca da tradução, ou melhor, sobre aquilo que nela não coube, mas que compõe a riqueza do texto em francês. Como Flannery O’Connor nos lembra, um bom romance opera por uma lenta acumulação de detalhes que se encontram na superfície do texto — isto é, num nível literal — que, por sua vez, acumulam sentidos em profundidade, num nível simbólico.

Primeiramente, o patronímico escolhido para a família - que por se tratar de um nome, escolhemos não traduzir - em português os “Burgueses”. O sobrenome não somente identifica essa família, mas também define o seu modo de vida. Mas diferentemente dos seus antecessores, Ferney não apresenta caricaturalmente os seus burgueses como se fossem tipos, mas seu olhar de escritora os apresenta como “pessoas”, procurando compreendê-los em profundidade. Como a autora gosta de afirmar, não se inspirou em nenhum livro anterior para compor o seu universo romanesco, pois até então os burgueses haviam sido vistos na literatura francesa como seres ridículos, mesquinhos e maus.

A segunda palavra para qual gostaria de chamar a atenção se encontra no início do segundo parágrafo e estabelece uma relação com o patronímico da família ao mesmo tempo em que a define: trata-se de uma família numerosa. A palavra “bourgeonnement”, que traduzimos por “geração de rebentos”, aproxima-se do termo “bourgeois” [burguês] por seu radical. Embora etimologicamente os radicais tenham origens diferentes, a relação pode ser lida em filigrana: são burgueses que se multiplicam incessantemente, “des bourgeois qui bourgeonent”.

A imagem da botânica ligada à família vai ganhando corpo ao longo da abertura, pois como uma árvore, a família vai espalhando os seus galhos. No parágrafo três precisamente, a autora utiliza a expressão “au gré des mariages”, que remete à expressão bastante usada na língua francesa “au gré des vents”, isto é, ao sabor dos ventos. Como pequenas sementes que voam ao sabor do vento e vão germinar longe da árvore “mãe”, os membros da família são “levados” pelo casamento a continuarem a se multiplicar sobre a terra. Nesse mesmo sentido vai a palavra que aqui traduzimos por “amadurecer”: o verbo usado em francês, no entanto, é “rougir” (avermelhar, enrubescer) que comporta um duplo sentido, o de certos frutos que ficam vermelhos quando amadurecem e o das relações entre homens e mulheres, cujos encontros os levam a se enrubescerem, isto é, a se apaixonarem.

Assim, podemos também ler em filigrana, a partir dessa relação entre a fertilidade do ponto de vista da botânica e da família, o mandato bíblico presente nos primeiros capítulos de Gênesis, no momento da Criação, no qual tanto a terra quanto os homens recebem a ordem para serem férteis, para se multiplicarem. Nada mais adequado para esta família católica e numerosa. No entanto, como os mesmos versículos de Gênesis nos mostram, devido à Queda, essa multiplicação não se fará mais “sem dores”: o que se refere neste caso tanto as dores do parto, quanto a dor de perder os filhos, ambas vividas por Eva e pelas personagens do romance. Como lança lapidarmente a narradora: “uma mulher que não tem filhos deixa de viver o que há de mais devastador na vida.”

“A elegância das viúvas”

(1)Arthur e Julie Bourgeois tiveram cinco filhas. Duas delas morreram cedo. As outras três, Helène, Henriette e Valentine, caminharam até o altar. Delas saíram dezoito netos, quarenta e três descendentes na segunda geração, cento e cinquenta e quatro na terceira e, já na quarta, oitenta até este momento.

(2) Uma incessante e farta geração de rebentos. Um elã vital (que eles tinham canalizado), um instinto puro (do qual não queriam ouvir falar), uma evidência (que nunca modificavam) os levava uns após os outros a amadurecerem, casarem, darem à luz e morrerem. Depois tudo recomeçava. Todos sabiam que essa era a melhor marcha das coisas: que o Senhor abençoe as alianças, que os jovens ventres se insuflem em júbilo, e que os mais velhos acalentem os recém-nascidos cheirosos em seus cueiros.

(3) A grande árvore familiar estendia seus galhos cada vez mais longe, ano após ano espalhando folhas — carregados pelo casamento os filhos iam deixando os pais - por todo o espaço. “Deus não nos criou para sermos inúteis”, era a divisa das mulheres desta família. Elas a transmitiam de mãe para filha, da mesma forma como sussurravam quando chegada a hora — com meias palavras para não infringir a decência — segredos de carne, de sangue, e de filhos. Pois as esposas se dedicavam todas a esta tarefa: procriar. E Deus que as guiava, a quem todas as noites elas ofereciam o seu dia, este Deus se encarregava de abençoar o seu parto, e de perdoar aos esposos a doçura das carícias soprando pequeninos em torno deles. Assim os casais eram férteis, como se a terra fosse tão bela que se fazia necessário dar à luz a seres capazes de com ela se maravilhar. Ou tão cruel que fosse preciso aprender a contar, entre os que nasciam, quais iriam sobreviver.

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