“Arte e escolástica” de Jacques Maritain Tradução do trecho “A arte cristã”
Sobre o autor
Jacques Maritain (1882-1973) foi um filósofo francês conhecido por sua contribuição para um renovo dos estudos tomistas na França. Oriundo de uma família de raízes protestantes, converte-se ao catolicismo e passa ser um dos pensadores cristãos mais influentes do início do século XX. Sua obra perpassa os mais variados assuntos, como pode-se observar a partir destes títulos:
- La philosophie bergsonienne: critiques Études, Paris, Rivière, 1913
- Art et Scolastique, Paris, Librairie de l’Art Catholique, 1920
- Trois Réformateurs: Luther, Descartes, Rousseau, six portraits AVEC, Paris, Plon, 1925
- Le Docteur Angélique, Paris, Paul Hartmann, 1929
- De la philosophie chrétienne, Paris, Desclée de Brouwer, 1933
- Frontières de la Poésie et Autres essais, Paris, Rouart, 1935
- Humanisme integral, Paris, Fernand Aubier, 1936
- Situation de la poésie, Paris, Desclée de Brouwer, 1938
- Christianisme et démocratie, New York, Éditions de la Maison Française, 1943
- Intuition créative dans l’art et la poésie, New York, Pantheon Books, 1953
- Pour une philosophie de l’éducation, Paris, Fayard, 1959
- La responsabilité de l’artiste, New York, fils de Scribner, 1960
Sobre a obra
Trata-se de um estudo da estética tomista publicado em 1920. Maritain inicia seu livro chamando a atenção para o fato que os escolásticos não escreveram um tratado especial sobre a “Filosofia da Arte”, mas que, a partir dos escritos de Tomás de Aquino, é possível depreender alguns princípios capazes de guiar uma estética cristã. Isso ocorreu principalmente porque entre os antigos não havia uma repartição clara entre o trabalho do artista e o do artesão, divisão que só ocorrerá a partir do Renascimento.
Assim, a arte é, segundo a visão deste neo-tomista, um habitus do intelecto prático (a obra a ser produzida). Os habitus (a serem distinguidos dos hábitos) são como qualidades de um tipo especial (a saúde é, por exemplo, um habitus do corpo; a prudência é um habitus da ordem do agir).
Uma breve evocação, à guisa de esclarecimento acerca deste termo que escolhemos manter em sua versão latina, seguindo, assim, o nosso autor: o conceito de habitus, tradução latina da palavra grega hexis, remonta à obra Teeteto de Platão, na qual Sócrates define a hexis como uma “condição ativa”. Tomás de Aquino retoma o termo como uma noção-chave para a compreensão de sua moral das virtudes, definindo-a como uma disposição.
O habitus relativo à arte não deve ser entendido simplesmente como um talento natural, que é, segundo Maritain, um pré-requisito para o seu exercício, mas que deve ser trabalhado por uma cultura e uma disciplina. Por outro lado, a simples aplicação de regras artísticas nada significa se falta o habitus ao artista. Assim, conclui o filósofo, a arte procede de um instinto espontâneo como o amor, mas deve ser cultivado como a amizade.
A originalidade e a contribuição de Maritain à filosofia da arte é o entendimento que o artista, quer seja cristão ou não, é um associado de Deus na produção de belas obras quando desenvolve as forças criativas dadas a ele pelo Criador.
O artista cristão, porém, é colocado diante de um duplo desafio, visto que é dificílimo ser cristão, tanto quanto é difícil ser artista. Dessa forma, o cristianismo deve alimentar a sua obra como uma “intenção intrínseca”. Por esse motivo, embora qualquer homem possa ser um artista, segundo o filósofo, somente um cristão será um artista completo.
Tradução do trecho “A arte cristã”
“Por arte cristã, não nos referimos à arte de igreja, arte especificada por um objeto, um fim ou regras determinadas, e que é apenas um ponto de aplicação particular e eminente da arte cristã. Entendemos a arte cristã como a arte que carrega a marca do cristianismo. Nesse sentido — a arte cristã não é uma determinada espécie do gênero artístico, não dizemos arte cristã como dizemos arte pictórica ou poética, ogival ou bizantina, um jovem não diz “vou praticar arte cristã” como diria “vou praticar agricultura”, não há escola onde se possa aprender arte cristã. É por meio do sujeito que a pratica, e pelo espírito do qual procede que se define a arte cristã, dizemos arte cristã ou arte de cristão, como dizemos arte da abelha ou arte humana, de modo que a arte cristã tem com a não-cristã uma comunidade analógica ou quase-analógica, em vez de uma comunidade genérica. É a arte da humanidade redimida. Ela está plantada na alma cristã, à beira das Águas Vivas, sob o céu das virtudes teológicas, entre os sopros dos sete Dons do Espírito. É natural que dê frutos cristãos. Se você quer produzir uma obra cristã, seja cristão, e busque fazer uma obra bela onde esteja o seu coração, não busque “parecer cristão”. Não tente esta empreitada vã e odiosa de dissociar em você o artista e o cristão. Eles são um só, caso você seja verdadeiramente cristão e sua arte não esteja isolada de sua alma por algum sistema estético. Mas aplique somente o artista ao trabalho; e precisamente porque são um só, a obra será inteiramente de ambos. Não separe a sua arte da sua fé, como faria um político mentiroso. Mas distingua o que é distinto. Não tente confundir à força o que a vida une tão bem. Se você fizer de sua estética um artigo de fé, corromperá sua fé. Se você fizer de sua devoção uma regra de operação artística, ou se transformar a preocupação de edificar em um procedimento de sua arte, corromperá sua arte.
A alma do artista em sua totalidade envolve a obra e rege a sua produção, mas deve fazê-lo apenas por meio do habitus artístico. Neste ponto, a arte não pode ser dividida. Ela não admite nenhum elemento estranho que, ao justapor-se a ela, venha a misturar-se, na produção da obra, à sua regulação. Domine-a, ela fará o que você quiser. Use de violência, ela não fará nada de bom. A obra cristã quer o artista livre, como artista. Ela só será cristã, porém, só terá em sua beleza o reflexo interior da clareza da graça, se transbordar de um coração possuído pela graça. Pois o habitus artístico que a envolve e que imediatamente a rege pressupõe a retificação do apetite quanto à beleza da obra. E se a beleza da obra é cristã, é porque o apetite do artista é retificado em relação a tal beleza e, porque, na alma do artista, Cristo está presente pelo amor. A qualidade do trabalho está relacionada à efusão do amor do qual procede e que move a virtude da arte como um instrumento. Portanto, a arte é cristã devido a uma amplificação intrínseca, e é por meio do amor que essa amplificação ocorre. Disso se segue que a obra será cristã na medida em que o amor for vivo. Não nos enganemos, é a própria atuação do amor, é a contemplação que se requer aqui. A obra cristã quer o artista santo, como homem. Ela o quer possuído pelo amor. Então ele poderá fazer o que desejar. Onde a obra soar menos puramente cristã é porque algo faltou à pureza do amor. A arte exige muita calma, disse Fra Angelico, e para pintar as coisas de Cristo é preciso viver com Cristo; são as únicas palavras que dele conhecemos, e nada poderia ser menos sistemático do que isso… Portanto, seria inútil procurar uma técnica, um estilo, um sistema de regras ou um modo de operação da arte cristã. Por direito, a arte que germina e cresce na humanidade cristã pode admitir uma infinidade. Mas todas essas formas de arte terão um ar familiar e todas serão substancialmente diferentes das formas de arte não-cristãs, como a flora da montanha difere da flora das planícies.”