O poema da criação do mundo — O poeta reformado Guillaume du Bartas e a Primeira Semana (1581)
Guillaume Saluste du Bartas — O autor
Esta apresentação do autor é uma tradução de um trecho do texto “Anciens poètes français” de Sainte-Beuve:
Talvez nenhum poeta tenha tido, durante sua vida e depois de sua morte, mais renome, em seu país e no exterior, do que Du Bartas. […] Guillaume de Saluste, senhor Du Bartas, de família nobre, filho de um tesoureiro do governo da França, nasceu por volta de 1544, não exatamente em Bartas, mas, como Goujet mostrou, a algumas léguas de distância, na pequena cidade de Montfort, não muito longe de Auch, no coração da Gasconha. […] Seus primeiros anos foram passados no local de seu nascimento e foram empregados em estudos, cartas e poesia. Ele compôs versos praticamente desde a infância. Sua primeira recolha de poemas intitulada La Muse Chrétienne [A musa cristã], foi publicada em Bordeaux em 1574, numa edição de 1579 que tenho diante de mim, lemos no cabeçalho uma dedicatória a Madame Marguerite, rainha de Navarra, que considerava como sua madrinha […] O poema Judith, acrescenta ele, foi encomendado cerca de quatorze anos atrás pela falecida Rainha Jeanne.
[…]O caráter específico da sua vocação não ficou em dúvida por um só instante: Du Bartas, desde o primeiro dia, estabeleceu-se como um poeta religioso. Ronsard e sua escola pagã reinavam nessa época. Nosso recém-chegado, pelo menos pela essência de sua inspiração, se diferencia de todos os outros: ele evoca Urânia, a musa dos acordes celestes e graves, que aparece para ele e o doutrina. No momento em que Desportes (1573) afina a sua lira e todas as vozes jovens entoam as suas canções, Du Bartas sobe o tom e protesta contra a afetação. É a Bíblia que ele se apega, são aos assuntos sagrados que demanda uma elevada e salutar moralidade. Na verdade, ele sempre mereceu o elogio que lhe foi concedido em um epitáfio latino: “Qui Musas ereptas profanœ lasciviœ sacris montibus reddidit; sacris fontibus aspersit; sacris cantibus intonuit; ele foi o primeiro que, libertando as Musas daquelas frivolidades profanas nas quais estavam perdidas, as devolveu às suas montanhas sagradas, mergulhou-as de volta em suas fontes santas e as fez ouvir apenas canções puras e divinas.”
A Semana ou a criação do mundo
Publicada em 1578 na França, em plena guerra da religião que opunha católicos e protestantes, a obra tem como argumento o primeiro capítulo do livro de Gênesis e segue a cronologia dos sete dias da criação. Mas, se na Bíblia, a criação do mundo é descrita em apenas alguns versículos, du Bartas “infla” a narrativa com mais de 6000 versos! Ele afirma que seu longo poema é como uma paráfrase do texto da Escritura, que por ser breve e condensado se distancia do estilo do poeta que se apega aos mínimos detalhes daquilo que descreve. Poderíamos afirmar que, de fato, o objetivo do primeiro capítulo de Gênesis é teológico e não poético. Mas precisamente por sua brevidade e condensação, o estilo do primeiro capítulo de Gênesis é “majestosamente lapidar”, como descrevera Von Rad.
Para Calvino, essa simplicidade extrema do primeiro capítulo de Gênesis deveria suscitar em nós mais o respeito do que a eloquência, pois “as Escrituras têm uma tal força de verdade que não precisam recorrer a artifícios de linguagem.” (Institutas, I, cap. VIII, 1). Traço que Calvino reconhece até mesmo na linguagem poética dos Salmos, quando oposta ao estilo grandiloquente dos poetas da sua época, mais preocupados com a forma que com o conteúdo. O estilo davídico, ao contrário, tem como maior característica a espontaneidade e a simplicidade da oração, e sua força está por esse mesmo motivo na carga emocional que comunica.
(Pequeno parênteses: Essa mesma sóbria simplicidade que não se abstém, no entanto, da carga emocional, ou melhor, que faz com que ela brilhe com ainda mais fulgor será um dos traços estilísticos das Escrituras elegido por Calvino para a sua prosa teológica. A simplicidade da língua, a brevidade e a clareza da exposição serão para o reformador as características necessárias para que o ensino e a compreensão da Palavra de Deus possam se destacar.)
Mas de toda maneira, podemos dizer que a empreitada de du Bartas, ainda que siga exatamente a estrutura dos sete dias da obra criadora de Deus tal como apresentada em Gênesis 1, se aproximaria mais do Salmo 104, por exemplo, cujo objetivo é louvar a glória do Criador, não somente pela obra criadora do princípio, mas também pela obra da Providência que a sustenta, como podemos depreender destes versos:
Esta voz poderosa, que fez o Universo
Ainda aqui em baixo ecoa sem cesso
Esta voz, dia após dia, renova do mundo a face
E nada nasce, vive ou cresce sem a sua vontade. ©Tradução de Samara Geske
Seu poema se constrói, assim, como um imenso hino ao Criador do Universo, uma espécie de inventário que enumera e pormenoriza cada elemento da criação, exaltando não somente a beleza e a perfeição da obra divina, mas a sua variedade:
E que mais direi? ô Deus, se vemos a cada passo
as obras de tuas mãos cobrir todo o espaço.
Se vemos em cada prado, centenas de plantas
em cores, tamanhos e formas diferenças tantas?©Tradução de Samara Geske
É verdade que ao fazê-lo de forma que beira às vezes a exorbitância, o poeta se alia ao estilo da retórica barroca em voga na sua época.
Obra de fôlego, portanto, não somente por essa profusão, mas pela ousadia da empreitada, o que, na apreciação de Sainte-Beuve, lhe garante um lugar de destaque na história da literatura:
“A poesia devota da Idade Média há muito havia sido esquecida; a Renascença havia tomado todos os espaços; os protestantes contavam apenas com os parcos salmos de Marot. Eis que surge um poeta ardente e erudito, que celebra a obra de Deus, que fala da sabedoria do Senhor e que destrinça segundo Moisés a continuidade e as belezas da cosmogonia hebraica e cristã. O que Parmênides, Empédocles, Lucrécio e o próprio Ovídio tentaram entre os antigos, ele ousa, por sua vez, e com detalhes científicos que não podem ser menosprezados. “
Se du Bartas se distancia da advertência de Calvino quanto à eloquência e aos vãos ornamentos, o poema nasce justamente de uma exortação de Calvino, e se alimenta de sua teologia.
Na epístola que introduz o “Saltério huguenote”, Calvino propõe um novo modelo para a poesia: o davídico, que ao invés de cantar coisas vãs e frívolas, canta aquilo que é divino e celeste. Tal recomendação é retomada por Teodoro de Beza, em 1551, no prefácio ao drama “O sacríficio de Abrãao” nos seguintes termos: “ melhor cantar um cântico a Deus que petrarquisar um soneto”. Assim, du Bartas vai acomodar a poesia da Plêiade não somente aos temas bíblicos, como o fez Beza no citado drama, mas também ao conteúdo doutrinário do calvinisnimo.
Nos versos que se seguem, podemos encontrar diversos ecos das Institutas da Religião Cristã de Calvino:
Quem poderá encontrá-lo separado de sua feitura,
que carrega na sua fronte como pintada sua figura?
Deus inapreensível pela humana percepção,
se torna como visível pelas obras de suas mãos:
Faz tocar a nossos dedos, cheirar as nossas narinas,
degustar a nosso paladar as suas virtudes divinas:
pelos pavilhões dos astros fala-nos a todo momento
tomando como arauto seus regrados movimentos.
[…]
Verdadeiramente este universo é uma douta escola
onde Deus sua própria honra sem palavras perora.
O mundo é um teatro […]
O mundo é um grande livro, onde do soberano mestre
O admirável engenho lemos em grandes caracteres.
Cada obra é uma página, e cada um de seus efeitos
é um belo caractere em todos os traços perfeitos.
[…]
Neste texto eloquente, onde a douta Natureza
Ensina aos mais grosseiros, que uma Divindade
Preside com suas leis esta redonda Cidade.
[…]
Uma criança de sete anos ou um homem de idade
ainda que sem instrução, pode lê-lo com facilidade.
Mas aquele que a Fé recebe como luneta,
Examina perfeitamente a translação dos planetas:
Compreende o grande Motor destes movimentos,
E lê fluentemente nestes velhos documentos.
Portanto, iluminado pela fé, eu desejo
ler estes letreiros pelo mais sagrado texto.
A começar por sua infância, e em seus períodos diversos,
Para melhor contemplar Deus, contemplar o universo.©Tradução de Samara Geske
Nos versos finais, vemos aparecer o antigo topos do “livro do mundo” ou “livro da natureza” que, no entanto, ainda que insuficiente, não é anulado pela Revelação das Escrituras. Tal topos é empregado por Calvino, para afirmar que somente através das lentes das Santas Escrituras é possível lê-lo corretamente e em profundidade. Dessa maneira, por exemplo, du Bartas passa em revista algumas das teorias científicas em voga na sua época para explicar os fenômenos da natureza, para retornar à verdade revelada pela Bíblia, ainda que essa “celeste linguagem” pareça mais “rústica” que as ditas teorias. Pois prefere “mil vezes desmentir sua razão” do que “desmentir o santo Espírito”, e não deseja se lançar a vãs especulações, pois teme que ao “alçar vôos muito altos, a cera de suas asas se derreta pelos raios das divinas candeias”, em clara referência ao mito de Ícaro.
Esta obra é ainda relevante por mais de um motivo: o primeiro deles é que ela funda toda uma tradição da épica francesa, de acordo com Sainte-Beuve. O segundo é que inspirou O Paraíso Perdido de John Milton, que se inicia exatamente onde o poema de du Bartas termina. Na verdade, du Bartas havia previsto uma “Segunda Semana” na qual abordaria a Queda do Homem, narrada em Gênesis 3, até a Restauração dos Novos Céus e da Nova Terra anunciada pelo livro de Apocalipse.
TRADUÇAO DOS PRIMEIROS VERSOS DO POEMA:
PRIMEIRO DIA DA SEMANA
Tu, que fazes tremer a terra e cuja Palavra,
Genuíno Netuno, controla o fluxo das águas,
Que aperta e solta de Éolo os freios,
E guia o curso dos celestes luzeiros,
Minha alma elevo a ti, purifica meu espírito,
E de um douto artifício enriquece meu escrito.
Ó Pai, dá-me um canto fecundo,
para entoar o nascimento do mundo.
Grande Deus, que eu mostre com meu verso
As mais raras belezas desse imenso universo.
Permita-me que na sua fronte teu poder eu veja:
e instruindo aos outros, eu mesmo aprenda.
[…]
Antes que existisse matéria e forma, tempo e espaço,
Deus estava em tudo, e tudo nele estava abarcado
Incompreensível, imutável, impassível,
Espírito, Luz, infinito, invisível,
Puro, sábio, justo e bom, Deus reinava só e plácido:
sendo para si mesmo o anfitrião e o palácio.
Profano que inquires qual importante empreendimento
Pode a mente e as mãos de Deus ocupar por tanto tempo
em sua solitude ? qual preocupação poderia levar,
durante a eternidade, a este Todo criar:
Pois diante de tão grande poder, tão grande sabedoria
nada convém tão mal quanto uma tépida preguiça?
Saiba, ó blasfemador, que antes deste Universo,
Deus criou o Inferno, para punir os perversos,
e para censurar as ações de seu orgulhoso entendimento,
a Sabedoria eterna os convoca ao julgamento.
Por um tempo sem madeira vive o carpinteiro,
O tecelão sem tela, e sem argila o oleiro:
E o Deus sábio e onipotente que é dos artesãos o Artesão,
Não poderia subsistir facilmente sem esta frágil criação?
[…]
Antes que o Euro soprasse, que o mar abundasse de peixes,
que a Lua mudasse de forma e a Terra desse seus feixes,
A mão do Deus soberano não estava inativa,
Sua Glória ele admirava, seu Poder, Justiça,
Providência e Bondade eram em todos os momentos
o sacro-santo objeto de seus profundos pensamentos.
E mais ainda, talvez dessa grande Orbe
contemplasse o Arquétipo e o molde.
Ele não estava sozinho, com ele viviam
Seu Filho e seu Espírito que o seguiam,
Pois sem princípio, sem mãe e sem semente,
Ele engendrou desse grande universo o Agente,
Seu Filho, sua Palavra, seu Conselho eterno,
Cujo ser é igual ao ser paterno.
Destes dois procedeu sua comum Potência,
Seu Espírito, seu Amor: não diverso em essência.
Mas diverso em pessoa, e cuja Deidade
Subsiste felizmente desde a eternidade.
E faz dos três juntos, um ser triplo-uno.
Mui belo, Musa, de um tão profundo Netuno,
não queiras sondar o fundo: cuidado ao te aproximares
deste Caríbdis glutão e quando pelo cavo doro passares
onde muitas naus, seguindo como Ursa a razão,
naufragaram tristemente em sua navegação.
Quem quiser por este abismo navegar,
não vai singrar em alto mar e acostar
de forma segura, sem usar de sabedoria
tendo a fé por vela, o Espírito por timoneiro e a Bíblia por estrela guia.©Tradução de Samara Geske
[…]
(Pequeno parênteses em relação à abertura do poema que ora traduzimos:
A alusão a Netuno, isto é, à mitologia romana, segue a mesma linha da discussão a respeito do uso de referências à cultura mitológica do oriente antigo no Salmo 104. Se existe realmente alguma relação intertextual no salmo entre Deus combatendo a força das águas e a luta de Mardouk contra Tiamat, o oceano primordial relatada no Enuma Elish, essa relação é estabelecida justamente de uma forma irônica para descreditar tais crenças. Enquanto Mardouk luta arduamente contra Tiamat, basta que Deus fale para que as águas “fujam” de sua presença. Neste sentido, o objetivo de Du Bartas, é mostrar que Deus é tão grande que controla até mesmo os outros deuses que personificam as forças da natureza, como Netuno ou Éolo. )