Teodoro de Beza, o poeta reformador ou o reformador poeta?
Conhecido como o grande continuador de Calvino, o reformador Teodoro de Beza muito tempo antes de se tornar um teólogo compunha versos. Com efeito, para os homens do século XVI, Beza era antes de tudo um poeta, enquanto para nós ele é hoje principalmente conhecido como um reformador e secundariamente como um poeta. “Poeta e teólogo” foi o subtítulo escolhido por Alain Dufour, autor de uma biografia sobre o reformador, que nos sugere ainda o epíteto “poeta-reformador” (p.11), em que o hífen marca não duas atividade estanques, mais interdependentes, como veremos a seguir.
É verdade que em sua juventude Beza foi “apenas” poeta, como testemunha uma recolha de versos em latim intitulada Poemata, de 1548, também conhecida tambem sob o nome de Juvenilia. Escritos em latim, esses poemas de juventude, reconhecerá o reformador mais tarde, eram compostos por alguns versos lascivos, fato do qual se arrependera publicamente em seu prefácio a “Abraham sacrifiant”[O sacrifício de Abraão]: “Pois confesso que encontrei sempre prazer na poesia e não me arrependo disso, mas lamento ter empregado este pouco de graça que Deus me deu nesse quesito em coisas que hoje me fazem corar de vergonha.” Mas seus inimigos usam esses poema para atacá-lo (em 1550, nos indica Dufour, p. 15, seus adversários publicam três edições piratas do texto).
Essa dupla faceta de Teodoro de Beza foi assim descrita por Michel de Montaigne, seu contemporâneo, em “Sobre a vaidade”:
“Em minha juventude vi um homem galante apresentar ao povo, com uma das mãos, versos excelentes em beleza e dissolução, e com a outra, no mesmo instante, a mais violenta reforma teológica com que o mundo já se tenha repastado.” (Sobre a vaidade, tradução Ivone C. Benedetti. — São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 72–73)
A “Reforma”, porém, já estava bem presente na educação de Beza, ainda que sua conversão se dê apenas alguns anos depois. Seu tutor, Melchior Volmar, a quem Beza fora confiado com a idade de 9 anos, lhe introduziu à leitura da Bíblia e a sua interpretação reformada (Volmar era luterano e amigo de Melanchthon).
Com respeito a esse período da juventude, o pesquisador Henri Meylan encontrou poemas inéditos que Beza não havia incluído no Poemata. Esses poemas se encontravam num manuscrito adquirido pela Biblioteca de Orléans em 1938 e são, em sua maioria, poemas religiosos que tem como tema o Julgamento final. No final de um dos poemas, Jesus vem para separar os eleitos dos réprobos, porém não se trata ainda da doutrina da dupla predestinação, dado que no início do poema, o homem fora apresentado como aquele que forja seu destino pelas próprias mãos: “Os homens possuem duas maneiras de viver, e o Pai supremo não inclina o coração dos mortais da mesma maneira: a uns apraz o bem, a devoção e a fé, a outros, o mal, o parjurio”. Meylan conclui que nessa época o entendimento de Beza está muito mais próximo do “De libero arbitrio” de Erasmo do que “De servo” de Lutero.
Em seguida, ocorre a sua conversão, história narrada no prefácio à edição latina de sua Confissão de fé, de 1560:
“Quando eu não figurava em último lugar entre os homens piedosos de Paris, nem entro os menos hábeis nas letras, fui tentado pela tripla armadilha de Satanás: a sedução da volúpia, da glória literária […] a esperança, enfim, de uma bela carreira a qual me convidavam os amigos da corte, e a qual meu pai e meu tio não cessavam de me exortar. Foi o próprio Deus que me fez escapar a estes perigos.” ©Tradução de Samara Geske
Como vemos, Beza estava bastante consciente de seus talentos literários e do futuro promissor que as letras poderiam lhe oferecer. Mas seria possível aliar doravante sua fé e seu talento ?
Após sua conversão na França, Beza refugia-se em Genebra e, em seguida, torna-se em 1549 professor de grego na Academia de Lausanne. Naquele momento, não era mais que “um poeta neo-latino e helenista”. Convivendo com Calvino, Viret e todos os seus alunos, futuros pastores — ou seja, mergulhado em um meio profundamente teológico — o até então poeta Beza passará a aliar o domínio das letras e da teologia com maestria. É Calvino quem primeiramente o aconselha a servir à igreja com seus dons de poeta dando continuidade à tradução versificada dos Salmos que havia sido começada por Clément de Marot.
Devemos lembrar que o próprio Calvino arriscou-se a compor os versos em latim (em seguida, traduzidos para ofrancês e publicados por Conrad Badius ) seu “Canto de vitória, canto a Jesus Cristo em versos” termina com um apelo aos “verdadeiros poetas” para que dediquem seus versos a louvar a Deus:
vós, gentis espíritos, poetas veneráveis,
que sabeis fazer versos doutos e deleitáveis,
Cantem louvores, cantem, do triunfo de Cristo,
e seus excelentes feitos redijam por escrito,
pois seu pequeno rebanho para celebrá-lo se esforça,
em hinos e canções a grandeza de sua força.©Tradução de Samara Geske
No quarteto final, Calvino reconhece que não passa de um poeta amador, mas cujo coração fervoroso leva-o também a expressar-se por meio da poesia:
A Natureza não me permite expressar bem a graça,
Mas meu zelo fervoroso incitou meu coração,
a cantar os grandes feitos de Cristo, único Rei campeão,
e basta-me seguir de longe o caminho que o poeta traça.©Tradução de Samara Geske
(Cf. o original em https://books.google.fr/books?id=6ZpbAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=fr&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false)
Beza então leva a cabo a tradução dos 101 Salmos restantes entre os anos de 1551 e 1562. As traduções de Beza, comparadas a de Marot, foram muito criticadas e citava-se sobretudo a superioridade estilística deste último. A aparente simplicidade de Beza não era, no entanto, um defeito de estilo, mas um efeito conscientemente desejado. Ele queria se distanciar a todo preço, não somente da temática, mas até mesmo do estilo preconizado pela poesia erudita da Plêiade. Em lugar dela, propunha uma “poesia simples e piedosa” (p. 27). No já citado prefácio ao drama “Abraham sacrifiant”, publicado em 1550, ele escreve:
Na verdade, seria melhor que cantassem um cântico a Deus que petrarquizassem um soneto e fazer do homem apaixonado um bobo da corte ou simular esses arroubos poéticos à antiga para insuflar a glória deste mundo e imortalizar este ou aquele, coisas que mostram para o leitor que seus autores não somente subiram ao monte Parnaso, mas chegaram até mesmo à lua.”
Como bem resumiu Dufour: “Todo o prefácio é um convite a cultivar uma poesia religiosa, visando à glória de Deus, em um estilo voluntariamente simples, mas grandioso, pungente, como convém à meditação cristã”. (p.27)
É esse novo estilo que abrirá as portas a “era de ouro do calvinismo francês” que viu nascer os poetas Jean de Sponde, Agrippa d’Aubigné e Guillaume du Bartas.
Este estilo simples será utilizado para a composição do drama “O Sacrifício de Abraão”, escrito em 155O para ser interpretado na formatura dos alunos da Academia de Lausanne.
Como o subtítulo escolhido por Beza indica, trata-se da primeira tragédia escrita em língua francesa.
No prefácio à tragédia que tem como argumento o capítulo 22 de Gênesis, Beza justifica a escrita de tal obra nos seguintes termos:
[“Portanto, lendo estas histórias santas com um profundo prazer e singular proveito, fui tomado pelo desejo de escrever em versos estas narrativas, não somente para melhor considerá-las e entendê-las, mas também para louvar a Deus de todas as formas que me são possíveis. ” Abraham Sacrifiant, 1548, ©tradução de Samara Geske]
Beza coloca assim seus talentos poéticos a serviço da sua fé, vista nos termos de uma “conversão poética”, o que tambem ocorrera com outros poetas franceses de seu tempo:
“Pois confesso que encontrei sempreprazer na poesia e não me arrependo disso, mas lamento ter empregado este pouco de graça que Deus me deu nesta área em coisas que hoje me fazem corar de vergonha. […] E aprouve a Deus que muitos homens que conheço na França não perdessem seu tempo com deploráveis ficções ou fábulas vãs e obscenas (se formos bem sinceros), mas visassem exaltar a bondade deste grande Deus do qual receberam tantas graças, ao invés de louvar a seus ídolos, isto é, seus senhores e damas, que são entretidos em seus vícios por meio de ficções e bajulações. Na verdade, seria bem melhor se cantassem um cântico a Deus ao invés de petrarquisar um soneto […]” Abraham sacrifiant, 1550, ©tradução de Samara Geske.
Nesse mesmo prefácio, ele também evoca a lembrança de que teve que fugir da França e refugiar-se em Lausanne devido à perseguição aos protestantes.
Interessantemente, o início de sua peça enfatiza também o fato de que Abraão deixou o país “onde Deus não era adorado”. Essa era a situação de muitos franceses que tiveram que deixar a sua pátria, família e bens para poder cultuar a Deus livremente.
Certamente os refugiados que assistiram à encenação da peça se identificaram com esses versos do início da tragédia nos quais o Abraão rememora a sua história:
“Setenta e cinco anos vivi fatigado,
segundo o que havias predestinado,
em uma casa rica nasci e fui criado.
Mas que benefício pode o homem possuir,
se é levado, levado a temer e a servir,
ao invés de ti, que criaste todo o universo,
a deuses falsos e seus mandamentos perversos?
Então me fizestes partir deste lugar
meus bens, meus pais e seus deuses deixar.
Incontinenti tua voz escutei,
mas então não sabia, como hoje sei
aonde querias me conduzir.
E aquele que escolhe te seguir,
caminha firme por esta via,
pois nada nem ninguém o desvia.” ©Tradução de Samara Geske
Outro ponto interessantíssimo dessa tragédia é que no prólogo Beza transporta seus espectadores de Lausanne para “dentro” do texto bíblico de Gênesis 22:
“Mas eis que ocorreu uma coisa interessante:
estais agora em um lugar muito distante,
Lausanne ficou para trás, mas podereis, se desejar
em uma hora ou menos a vossa morada retornar.
Eis que na terra dos filisteus vos encontrais agora.
Estais acaso descontentes, desejais ir embora?
E mais vos digo, vedes bem esta casa?
é de um servo de Deus a morada,
Abraão, aquele mesmo do qual
por sua viva fé, o nome é imortal.
e neste lugar vós o vereis tentado
até o forte ataque atormentado.
Vós o vereis pela fé justificado,
seu filho Isaque quase sacrificado.
Enfim, contemplareis estranhas paixões,
a carne, o mundo e suas afeições
não somente ao vivo representadas,
mas também pela fé superadas.
E conhecereis este fiel personagem,
seu bom testemunho e sua coragem.
Logo avistareis Sara e Abraão,
e depois Isaque virá então:
não são estas testemunhas assaz confiáveis?
Quem quiser conhecer coisas tão admiráveis,
rogamos que seus ouvidos emprestem somente
e que ouçam esta história atentamente.
Estejais certos de que maravilhas contaremos,
e que depois vossos ouvidos devolveremos.” ©Tradução de Samara Geske
Mas ao lado dessa verve poética e profundamente ligada ao texto das Sagradas Escrituras, encontramos uma verve satírica e eminentemente teológica, cujo objetivo é combater os detratores, sobretudo católicos, da Reforma.
É com esse objetivo que Beza publica o panfleto, escrito em latim macarrônico, a Epistola Magistri Benedicti Passavantii, escrita contra Pierre Lizet, abade de Saint-Victor.
Escrito num estilo que muito lembra Pantagruel de Rabelais, o panfleto conta a história de Lizet que vai até Genebra para espionar os hereges fazendo-se passar por um protestante. Convidado para jantar, perguntam-lhe sobre as novidades de Paris, e começa-se a se falar do livro que ele havia publicado e durante essa conversa seus argumentos vão sendo refutado ponto por ponto. Ao longo das páginas, há também diversas sátiras acerca de Lizet e de outros doutores da Sorbonne, sem se esquecer, é claro, do papa, que recebe o livro do abade, e leva-o consigo ao banheiro a fim de lê-lo. Mas o estilo é tão ruim que ele usa o livro para se limpar e “arranha a santa-sé apostólica”, mas o trocadilho acaba se perdendo em português, pois a palavra que traduzimos por “sé” é “siège” em francês, que significa não somente assento, mas também as nádegas… (cf. Dufour, p.30–31)
É neste panfleto satírico que Beza se mostra teólogo. Seu biógrafo elenca alguns elementos doutrinários que podem ser ali claramente observados: a definição das marcas da verdadeira igreja (sobre as quais Beza escreverá um tratado em 1578), a distinção entre tradição e doutrina, a teoria da justificação e da santificação, a definição da lei cerimonial (tema que será recuperado em um tratado de 1577) e, finalmente, o princípio de interpretar a Escritura pela Escritura. (p.31)
Seus trabalhos seguintes serão a tradução latina do Novo Testamento com adição de diversos comentários, em algumas edições, filológicos e em outras, exegéticos e teológicos. Em 1555, publica a “Table de la predestination” a fim de explicar a doutrina da eleição e da danação eterna.
Em 1559, Beza publica uma Confissão de fé, dividida em sete pontos, mas que, na verdade, mais se aparenta a um catecismo e é como um resumo das Institutas de Calvino. No prefácio à edição latina, dirigida ao seu mestre Volmar, Bèze redige uma espécie de autobiografia em que relata a sua conversão. No prefácio à edição francesa, Beza declara expressamente porque foi levado à redigi-la: expor a razão de sua fé a seu pai, que havia permanecido católico. Também em seu prefácio, nosso poeta-reformador chama a atenção para um fato novo: a Escritura, traduzida para o francês, está agora ao alcance de todos.
“aqueles que vivem somente do comércio das almas dos outros, convenceram o pobre povo de que não havia necessidade de ler as Escrituras, nem que se buscasse conhecer ponto por ponto aquilo em que é preciso crer para a salvação, mas que bastava crer confusamente e de forma geral naquilo que a Igreja romana cria, dirigindo-se, no que concerne às demais coisas, aos teólogos.”
Aqueles que pensam erroneamente que os reformadores foram iconoclastas ferozes que se lançaram contra todo tipo de imagem, ficarão surpresos ao encontrarem na abertura da versão latina dessa confissão de fé um emblema da religião. No canto direito, temos um diálogo em versos em que a Religião apresenta seus atributos:
“Por que estás vestida com roupas retalhadas,/Ô Religião, verdadeira filha do Pai celeste?/ Porque vestes tão miseráveis? — Eu desprezo as transitórias riquezas./ E este livro? — É a venerável lei de meu Pai./ — Por que este busto nu? — Isso convém àquele que ama a candura./Por que apóia-te sobre a cruz? — A cruz é para mim um doce repouso./ Por que estas asas?- Eu ensino os homens a voar acima dos astros./ Por que estes raios? — Eu afugento as trevas do espírito./ Para que serve este freio? — Para refrear os furores do espírito./ Por que está a morte a teus pés? — Porque sou a morte da morte.” ©Tradução de Samara Geske
E esse recurso ao uso de imagens será também utilizado em obras menos conhecidas, os Icones e os Emblemata de 1580. Icones é justamente um livro que traz os retratos dos homens que contribuíram para a reforma da igreja, acompanhado de uma breve biografia e de versos em latim. O livro foi traduzido para o francês por Simon Goulart. Essa publicação, como pode-se imaginar, não deixou de suscitar acusações de idolatria, do que Beza se defende antecipadamente em seu prefácio afirmando que os leitores serão beneficiados pelos “verdadeiros retratos”, pois poderão “contemplar e dialogar” com os escritos desses homens de maneira viva, visto que a imagem restitui ao menos um pouco da presença real.
Um exemplo de um dos emblemas do livro Emblemata:
Aquele que busca do círculo a inauguração,
encontra-a no mesmo lugar, ao término unida.
Assim tu que amas a Cristo em verdade e devoção,
acharás no final de tua jornada, o começo de tua vida.
©Tradução de Samara Geske
Não podemos deixar de citar também outra obra desta época que reúne teologia e poesia, os poemas em prosa das Chrestiennes meditations que são meditações poéticas a partir dos chamados salmos de penitência. Essa obra inspirou toda uma geração subsequente de poetas reformados: as Tragiques de Aubigné, as Meditations de Jean de Sponde e de Duplessis-Mornay.
Podemos, assim, concluir que a atividade poética de Beza esteve sobretudo ligada à paráfrase das Escrituras ou se dava em obras de devoção, e pode ser considerada, portanto, como uma poesia de cunho religioso. Dessa forma, na Reforma, a poesia se torna serva da teologia, como na Idade Média a “filosofia fora a serva da teologia. [philosophia ancila theologiae].
Beza exegeta das Escrituras, Beza tradutor da Bíblia, Beza pregador, Beza poeta: todas essas atividades e facetas do reformador muitas vezes se confundem como na série de sermões que escreve em 1584 sobre o Cântico dos cânticos precedidos por uma paráfrase dos versos bíblicos escrita em versos líricos latinos.
Beza, o poeta reformador ou o reformador poeta? O que podemos afirmar apenas é que Beza amou a Deus e a sua Palavra, e que a Deus serviu também com as palavras.